sábado, janeiro 31, 2009

Só é preciso encontrar a história certa


Todos sabemos que cinema e futebol raramente rimam quando fazem parte da mesma fórmula. Venha Pelé, Caine e Stallone em ambiente de guerra ou até uma junção das quatro linhas às artes marciais, a verdade é que o resultado final de filmes com o futebol como pano de fundo acabam sempre num empate. Eis uma história, descoberta aqui, que era capaz de inverter a tendência e impingir uma goleada, tanto na crítica como nas bilheteiras.

O Jogo da Morte

A ocupação de Kiev

Tudo começou em Setembro de 1941, quando o exército alemão, quebrando o pacto de não agressão assinado dois anos antes por Hitler e Stalin, ocupou vários territórios soviéticos entre eles a cidade de Kiev. Duas consequências da guerra foram a fome e a proibição do futebol. Os jogadores, à semelhança da grande maioria da população, foram feitos prisioneiros ou tornaram-se vagabundos, sobrevivendo como podiam ao frio e à perseguição nazi. Entre eles, Nikolai Trusevich, antigo guarda-redes do Dínamo de Kiev e um dos melhores jogadores da Europa na sua posição. No entanto, num daqueles encontros fortuitos de que a História é pródiga, Trusevich foi abordado por Josef Kordik, um veterano da I Guerra Mundial, fanático pelo Dínamo de Kiev e que, devido à sua origem austríaca e ao facto de falar bem alemão, não era perseguido pelos nazis. Ao encontrar o seu ídolo doente e subnutrido, Kordik, que administrava uma das padarias responsáveis pelo abastecimento da cidade, tratou logo de contratá-lo como seu funcionário. E foi durante uma conversa com Trusevich que Kordik teve a ideia de procurar antigos jogadores que tivessem sobrevivido à ocupação.

A formação do Start

O objectivo de Kordik não era só o de salvar esses atletas da miséria e empregá-los na sua padaria. Aproveitando a série de pequenas concessões que os nazis faziam para dar um aspecto mais normal ao quotidiano da cidade, como a realização de alguns jogos futebol no antigo estádio do Dínamo de Kiev, Kordik tinha o sonho de formar uma equipa. Como a proibição do Dinamo se mantinha, convenceu os alemães a aceitarem a formação de um novo clube, alegando que o desporto seria benéfico para a própria produtividade da padaria. O que ele não revelou foi que o seu clube seria formado por antigos jogadores do Dínamo de Kiev, do Lokomotiv e de clubes rivais do campeonato russo. E foi assim que nasceu o FC Start. E foi assim que, aproveitando os contactos de Kordik, o clube começou a desafiar equipas de soldados inimigos e selecções formadas pelo III Reich.

As primeiras vitórias

O primeiro jogo do FC Start foi disputado a sete de Junho de 1942 contra o Rukh, equipa criada por Georgi Shvetsov, um ex-jogador do Lokomotiv Kiev. Shetsov era um nacionalista ucraniano que se opunha ao regime comunista e que se tornara aliado dos alemães após a invasão. Até então, os jogos disputados no antigo estádio do Dínamo, entretanto rebaptizado de Estádio Ucraniano, não conseguiam cativar o interesse da população local, e o motivo era simples: só os alemães e os seus aliados é que estavam autorizados a jogar. Esta era também a razão pela qual o Rukh era uma equipa incapaz de cair nas boas graças do povo. Shvetsov bem tinha tentado recrutar antigos ídolos do Dínamo e do Lokomotiv para as suas fileiras, mas nenhum dos funcionários da padaria de Kordik aceitou representar o lado dos invasores. Mesmo que isso tivesse significado uma melhoria significativa nas suas condições de vida.

Sem um equipamento adequado, os jogadores do Start apresentaram-se em campo para o seu primeiro jogo com calças cortadas, sapatos e camisas vermelhas que Trusevich encontrara nas ruínas de uma loja. O vermelho, para Trusevich, teria sempre de ser a cor da vitória contra os nazis. O único jogador do Start que tinha chuteiras apropriadas era Makar Goncharenko, que as conservara intactas durante a invasão, convicto de que nem a guerra o impediria de jogar futebol. Mesmo assim, e com seus jogadores em más condições físicas, uma vez que tinham passado a noite anterior a trabalhar na padaria, o Start goleou o Rukh por 7 a 2. Humilhado, Shvetsov fez com que os nazis proibissem o Start de entrar no Estádio Ucraniano, mas nem isso impediu a ascensão do clube. Kordik transferiu a sua equipa para o estádio de Zenit, no centro de Kiev, onde o Start se estreou a 21 de Junho com uma vitória por 6 a 2 contra uma equipa da guarnição húngara, que auxiliava os alemães na ocupação da União Soviética. Três dias depois foi a vez da guarnição romena sofrer 11 golos sem resposta.

Uma popularidade incómoda

No entanto, as coisas só começaram a tomar proporções verdadeiramente inquietantes para o lado dos invasores quando, no dia 17 de Julho, o Start despachou uma equipa do exército alemão, denominada PGS, por 6 a 0. A lenda do Start enquanto equipa imbatível estava lançada e a população de Kiev começou a comparacer em peso aos jogos. E nem o facto de a imprensa local, controlada pelos alemães, menosprezar ou mesmo ignorar as proezas do Start, travou o crescimento galopante da sua popularidade. As vitórias no futebol, tanto hoje como há 66 anos atrás, são a melhor forma de unir um povo, porque a energia, a coragem e a união que se manifestam em campo são transmitidas a quem a elas assiste. Aquilo que os alemães tinham planeado inicialmente como medida de pacificação ameaçava tornar-se num incentivo à revolta.

A 19 de Julho foi a vez da poderosa equipa húngara do MSG Wal falhar a nova missão encomendada pelos nazis para derrotar o Start. Mais uma goleada, desta vez por 5 a 1, a favor dos soviéticos, que voltaram a vencer a mesma equipa no jogo de desforra, uma semana mais tarde, por 3 a 2. Foi a única ocasião em que o Start derrotou um adversário pela diferença mínima. E nem mesmo o preço inflaccionado dos bilhetes, na tentativa de afastar o povo do estádio, impediu que uma multidão comparecesse e exultasse com a vitória dos seus ídolos.

O primeiro encontro com o Flakelf

A dimensão épica da última vitória contra o MSG Wal, com o guardião Trusevich a efectuar uma das suas melhores exibições e a segurar o resultado nos últimos minutos, enfureceu os nazis. Para eles, derrotar o Start dentro de campo estava a tornar-se uma questão de honra. Por isso, foi marcado para 6 de Agosto um jogo entre Start e o Flakelf, a melhor equipa alemã da época e aquela que era utilizada como instrumento de propaganda nazi. O resultado desse jogo? 5 a 1 para o Start. Nova humilhação para a ideologia da raça superior. De Berlim chegou uma ordem para acabar com a vida dos jogadores do Start, única forma possível de evitar novas derrotas alemãs em solo ucraniano. Mas os nazis que ocupavam Kiev não acataram a ordem, por acreditarem que se o fizesse estariam a perpetuar a derrota alemã e a eternizar a lenda do Start. O desporto, para os nazis, deveria ser o reflexo da sociedade. Já o tinha sido nos Jogos Olímpicos de 1936, organizados em Berlim com o propósito de vincar a superioridade da raça ariana. Para os altos comandos nazis em Kiev, a decisão de fuzilar os jogadores do Start teria de esperar até conseguirem uma vitória sobre essa equipa. Decisão marcada para 9 de Agosto, dia em que esperavam que o Flakelf conseguisse vingar a pesada derrota que lhe fora infligida apenas 3 dias antes.

Foi num clima de forte tensão que a partida teve lugar no estádio do Zenit, completamente lotado. Antes do início do jogo, um oficial das SS entrou no balneário do Start apresentando-se como o árbitro da partida e exigindo que os jogadores do clube fizessem a saudação nazi quando cumprimentassem os adversários. Já em campo, equipados com camisola vermelha e calções brancos, os soviéticos levantaram o braço mas, em vez de dizerem “Heil Hitler!”, levaram a mão ao peito e gritaram “Fizculthura”, uma expressão de incentivo à prática desportiva. A equipa alemã, a jogar de camisola branca e calções pretos, marcou o primeiro golo do encontro, aproveitando um momento em que Trusevich tentava recuperar de um pontapé que um adversário lhe dera na cabeça. Até ao fim da primeira parte, no entanto, o Start conseguiu dar a volta ao marcador, com um golo de Kuzmenko e dois de Goncharenko. Durante o descanso, os jogadores soviéticos voltaram a receber visitas de oficiais das SS no balneário e advertências quanto ao destino de cada um, caso insistissem em vencer a partida. Apesar de terem chegado a pensar não voltar para o segundo tempo, os jogadores do Start, ao ouvirem os gritos dos seus compatriotas presentes nas bancadas, decidiram regressar ao campo. E jogar para ganhar. Não só para ganhar, para dar um baile aos adversários o que, nas condições em que se encontravam, significava assinarem a sua sentença de morte. E assim foi. No final do jogo, quando ganhavam por 5 a 3, o avançado Klimenko apareceu isolado à frente do guarda-redes do Flakelf. Depois de fazer uma finta que sentou o alemão no relvado, Klimenko ficou com a baliza deserta à sua mercê mas, em vez de rematar para golo, virou-se para trás e pontapeou a bola para o meio campo. Um gesto de superioridade total em relação ao adversário e que, para o público presente, constituiu um momento único de libertação e um incentivo à resistência.

Depois desse encontro, o Start ainda jogou mais uma partida, a 16 de Agosto, com o Rukh. E voltou a golear o primeiro adversário com quem tinha jogado, desta vez por 8 a 0. Mas o destino dos seus jogadores já estava traçado. Este último jogo tinha servido apenas para fechar o ciclo da efémera e imortal existência da equipa. Depois desse jogo, a padaria onde os jogadores do Start trabalhavam foi invadida. O primeiro a morrer torturado em frente de todos eles foi Kordik. Os restantes foram enviados para o campo de concentração de Siretz. Quatro deles - Kuzmenko, Klimenko, Korotkykh e Trusevich - foram executados com tiros na nuca. O guarda-redes e capitão da equipa, Nokolai Trusevich, morreu vestido com a camisola vermelha do FC Start e, segundo relatos de testemunhas, gritou “o desporto vermelho nunca morrerá” antes de receber a bala. Os restantes jogadores foram torturados até à morte. Goncharenko e Sviridovsky, que não se encontravam na padaria naquele dia fatídico, foram os únicos que escaparam, conseguindo sobreviver, escondidos, até à libertação de Kiev, em Novembro de 1943.

Ainda hoje, os possuidores do bilhete do encontro em que o Start venceu o Flakelf por 5 a 3 têm direito a um lugar no estádio do Dínamo de Kiev. Na proximidade do mesmo existe um monumento que saúda e recorda as façanhas dos jogadores que fizeram do clube uma lenda.

3 comentários:

Dário Ribeiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Dário Ribeiro disse...

Uma pérola, notável e impressionante.

Sendo um consumidor de informação de tudo o que tenha a ver com essa parte negra da História e ao mesmo tempo um amante de futebol, li esta estória com redobrado interesse.

Não sei se vão fazer um filme ou não... mas espero que sim.

Abraço

Carlos M. Reis disse...

Eu até acredito que já haja algum filme desta história no cinema russo. Vou fazer uma pesquisa quando tiver tempo. De qualquer das formas, fica o relato. Um grande abraço Dário.

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